quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O carro do meu avô


Meus avós possuíam um belo BMW aqui em Portugal. Todo chique, nos trinques, motivo dos orgulhos que correm assim, digamos, até onde a vista alcança, mas invisíveis quando debaixo de uma fina camada de pó.

Em um belo dia, após uma dessas festas-orgias alimentares que ocorrem tão freqüentemente nas casas e restaurantes dos do meu sangue, meu avô, ofuscado pelos raios de sol do fim da tarde que varriam estes tapetes que são as estradas de Portugal, e pelo whisky que circulava nos seus vasos sanguíneos e tecidos, inclusive nas suas novas válvulas “interespecíficas” (já que não são originalmente da nossa espécie) do coração, saiu velozmente da estrada, levou o carro por um monte de brita acima, alçou vôo e aterrissou, chapado, do outro lado.

Não sobrou nada que se aproveitasse do carro. O piloto e passageiros saíram de lá inteiros, com uma ou outra escoriação que não pareciam grandes diante do estado do automóvel.

Isso aconteceu há uns anos.

Estou agora por essas terras lusas, com meus avós e tias-avós. Os tenho conduzido todos os dias para onde quer que eles queiram ir. Guio um grande Mercedes, do início da década de 80, que meu avô chama de “transatlântico”. Pedaço concreto da história da família, esse carro merecia um livro somente sobre ele, devido ao seu significado e à sua “vida”.

Nunca tive tanto prazer em guiar um carro. E o prazer se torna ainda maior quando conduzo quatro das pessoas que guardam os segredos e histórias do que se passou com personagens de outros séculos, que já carregavam características que hoje levo comigo.

Percebo a comodidade, segurança e status que um novo carro traria nesse momento. E até concordo com o auê e empolgação em torno do assunto. Mas não acredito repetir a experiência que tive nos últimos dias se tamanha euforia for concretizada.

Transportar esse senhor e essas senhoras através de vilas de pedra e de grandes cidades de concreto nesta terra é dessas coisas que guardarei comigo até o fim dos meus dias.

~~

Outro dia saímos, eu e meu avô, do lava rápido, após banhar o nosso “transatlântico”.

- Ah! Agora ficou limpo! É um carro bonito! – trovejou meu avô.

Demos alguns euros de gorjeta para a jovem venezuelana de cabelos vermelhos que fazia a limpeza mais minuciosa e partimos, navegando pelas estradas de Portugal.

Em determinado momento passamos por uma propriedade nossa, e meu avô, com um gesto nada sutil, mandou-me virar e entrar naquele lugar, que por acaso está cheio de pinheiros altos como arranha-céus, terra, pedra e mato. Muito mato.

Assim fizemos, e levamos o transatlântico por terras inexploradas. Só para passarem a serem exploradas mesmo. Nada de mais.

No fim de tudo, o carro de quase 40 anos, lavado e brilhante, acaba cheio de pó e mato a enfeitá-lo. Com uma calota torta e faróis felizes.

Não me perguntem. Pode parecer estupidez. Mas a impulsividade e o desapego desse senhor, em prol da sujeira e do sorriso, me fez pensar que sou mesmo parte da família.


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